Conceitos caem por terra, surpresas emocionantes surgem pelo caminho e, ao final, o viajante descobre por que fez o percurso
Os Estados Unidos são um país de imigrantes e essa diversidade moldou sua grandeza cultural. Isso é um fato. É fato também que nem todos os que pisaram em território norte-americano tiveram a oportunidade e o direito de viver o American Dream.
Antes do navio Mayflower atracar em Massachusetts, uma 1ª embarcação trazendo seres humanos da África, já havia aportado em Jamestown, na Virginia. Enquanto os primeiros peregrinos sonhavam com uma nova vida, em um novo continente, regida por leis justas e igualitárias, famílias inteiras retiradas à força de suas casas na África iniciavam uma vida radicalmente oposta ao sonho das famílias do Mayflower. Da vida desses homens, mulheres e crianças, trazidos de vários pontos do continente africano retirou-se a humanidade e a dignidade. A partir daquele momento eles se transformaram numa mercadoria, em uma terra distante. Este é o Quilômetro Zero da Trilha dos Direitos Civis.
O Poder da Civil Rights Trail
Muito mais do que um roteiro temático, a Civil Rights Trail tem o poder de transformar a vida de quem a percorre. Emocionante, rica em história e cultura, ela é o retrato, ora em preto e branco, ora em colorido carregado + som Dolby stereo, de um momento pungente da história norte-americana.
Como percorrer a Trilha dos Direitos Civis
Muito bem contada, cabe você escolher qual profundidade quer dar ao roteiro. Para isso é preciso estar ciente que tempo é um fator determinante. E também que cabe a você manter olhos, ouvidos e coração bem abertos para mergulhar neste caminho que corta pelo menos 5 estados norte-americanos = Louisiana + Mississippi + Tennessee + Georgia + Alabama.
Ao final do percurso terá descoberto costumes, ouvido música da melhor qualidade, saboreado o que há de mais autêntico em matéria de gastronomia, descansado o corpo e decantado as ideias em hotéis históricos, exclusivíssimos.
Até o último dia de viagem, terá aprendido muito, rido muito, se emocionado muito e deixado lágrimas pelo caminho. Terá curtido cada centímetro dos milhares de quilômetros rodados e voltará para casa entendendo que o amor é um processo em eterna construção, que inclui respeito, empatia, humildade e a visão de que somos todos seres humanos tentando construir, juntos, um mundo melhor, em um planeta chamado Terra.
Em cada parada uma nova emoção
Também no formato, a Civil Rights Trail surpreende. Em cada parada pelo caminho a história vai sendo descoberta e faz a emoção aflorar. Ao decidir o que ver, de maneira mais ou menos profunda, você deixa de ser um mero observador para interagir com a história. Siga tecendo seus próprios pontos na grande malha do percurso. Exatamente como numa tapeçaria, começarão a surgir imagens retratando os trechos mais leves e mais densos da trilha. Num crescendo, a viagem vai ganhando forma e conteúdo, com desenhos bem nítidos sobre um fundo mais ou menos difuso. Tudo depende do que você quer ver. O resultado será uma obra pessoal, a sua visão panorâmica da história do Movimento e da Luta pelos Direitos Civis nos Estados Unidos.

A minha viagem começou em Lake Charles
A minha Trilha dos Direitos Civis teve início em Lake Charles. Caminhando pelo centro antigo foi fácil sentir o caloroso abraço da cultura da Louisiana. As pessoas são amáveis e gostam de conversar. Olham para você e sorriem. Falam um inglês com sotaque musical e respondem dizendo: Yes, ma’m. No ma’m. É delicioso.
Restaurante em Lake Charles
Fachada e pratos do Restaurante Seafood Palace, em Lake Charles, Lousiana
E seguiu para Baton Rouge
24 horas depois, já em Baton Rouge, entendi que tinha colocado os pés na Civil Rights Trail ao visitar o Capitol Park Museum. Lá, descobri que a cidade sediou o 1º bem-sucedido bus boycott do país. Boicotar o transporte público era uma maneira de protestar contra a segregação racial.

Os afro-americanos eram obrigados a sentar no banco de trás dos ônibus ou viajar em pé, mesmo que os assentos da frente, reservados aos brancos, estivessem disponíveis. Este boicote inspirou muitos outros, incluindo o da cidade de Montgomery, no Alabama, que foi um marco na luta pelos Direitos Civis.
A partir daí mergulhei nos museus
Um dos pontos altos da Civil Rights Trail é a visita aos museus de Jackson (Mississippi), Memphis, Nashville (Tennessee), Atlanta (Georgia) e Montgomery (Alabama). Explorá-los será essencial para você conhecer a história do Movimento dos Direitos Civis, da sua origem aos tempos atuais. Cada um tem uma temática própria, são complementares e, consequentemente, imperdíveis.
Jackson, Mississippi
Em Jackson, o novíssimo Mississippi Civil Rights Museum é uma obra de arte arquitetônica, documental e tecnológica. Ele nos convida a penetrar em núcleos históricos e distintos da luta pela igualdade racial. Interativo, é dividido em galerias que mostram os principais eventos que fizeram a luta ganhar corpo e evoluir. Imprescindível é fazer uma visita guiada. Só assim você vai conhecer com mais propriedade os detalhes históricos e poderá fazer perguntas a um especialista no assunto.
O aprendizado se acumula até você chegar ao Átrio Central. O espaço convida o público a sentar e pensar em tudo o que vivenciou no museu. Você se vê no centro de uma rotunda, cercado pelos retratos dos heróis do movimento – a maioria deles pessoas comuns, como você e eu – e ouve músicas que remetem tema. Suspensa, no centro do ambiente está uma escultura fluida, que eleva olhares e pensamentos para o alto e além. Você sairá do Mississippi Civil Rights Museum uma pessoa diferente daquela que entrou.

Também em Jackson, o Medgar Evers Home Museum propõe uma reflexão tão profunda quanto a que experimentamos nos museus monumentais. O lugar é a casa onde o ativista e secretário da NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor) viveu e foi assassinado. A visita é feita com hora marcada e guiada por um voluntário. A experiência traz a poderosa autenticidade da vida real. De pé, na sala onde morou este veterano da 2ª Grande Guerra, você ouve sua biografia. Olha pela janela e imagina o momento em que o pai de família chega ao lar e leva um tiro pelas costas, de um militante da Ku Klux Klan. O tiro ricocheteia e perfura as paredes da sala e da cozinha, atingindo a geladeira. As marcas fazem o atentado se transformar em uma entidade que continua viva, contando a história de um dos heróis do movimento.
Restaurantes em Jackson
Em Jackson (MS) experimentando meu 1º café da manhã sulista: frango frito com waffle, no Sugar Place + Outra espetacular atração: Restaurante Bully’s serve comida típica do Sul
Memphis, Tennessee
Em Memphis, ao visitar o icônico National Civil Rights Museum você já terá acumulado uma valiosa bagagem histórica e emocional. O conhecimento faz você ligar os pontos, entender os fatos e reviver o passado. Foi exatamente o que senti ao me ver diante do Hotel Lorraine, onde Martin Luther King Jr. foi assassinado.

Lá estão o letreiro e a fachada do hotel, rigorosamente preservados, levando-nos instantaneamente para a década de 1960. Na sacada do quarto, uma coroa de flores é visão impactante, lembrando o local exato do assassinato. Internamente a estrutura se transformou em um museu moderníssimo. Diversas tecnologias são usadas para contar a história de Luther King e suas lutas. Já o quarto onde Dr. King se hospedou foi colocado dentro de um cubo de vidro, remetendo a uma cápsula do tempo. Uma das camas está desarrumada, e há um jornal jogado displicentemente sobre a outra. O serviço de quarto parece ter acabado de chegar, com uma xícara cheia de café sobre a bandeja. O cinzeiro está entupido de tocos de cigarro e um copo d’água jaz eternamente ao lado da TV.
Restaurantes em Memphis
Em Memphis, os restaurantes Restaurante The Beauty Salon + Gray Canary estão entre os melhores da cidade
Repare que a música começou a tocar mais alto
Todo o Sul dos Estados Unidos é extremamente musical, mas você vai notar: é ao entrar no Tennessee que a música passa a fazer parte da Civil Rights Trail. É no Tennessee que está Graceland, o reino de Elvis Presley. E Nashville que guarda uma coleção de ritmos + belas histórias.
Visite oCivil Rights Room at the Nashville Public Library, que mantém um valioso acervo de pesquisa sobre o tema. Vá ao Frist Art Museumpara ver a exposição de fotos dos protestos pacifistas e dos grandes líderes do movimento, que estamparam os jornais da época. Nashville cria a trilha sonora perfeita para Civil Rights Trail. A Cidade da Música inclui temas ligados aos Direitos Civis em suas principais atrações.
É assim no Histórico Estúdio B da gravadora RCA, onde Elvis Presley, Roy Orbison e tantos outros cantores gravaram centenas de discos. Através de uma visita guiada você vê o período da luta pelos Direitos Civis inserido nas histórias do estúdio. E como você está na Cidade da Música, precisa visitar a Meca da country music, oCountry Music Hall of Fame. Grandioso, é um dos cartões postais locais. Já de longe, o projeto chama a atenção. É música transformada em monumento arquitetônico.

Até visitantes como eu, que não acompanham a história da country music, descobrem porque ela causa tanto frenesi. Acompanhe as vitrines que expõem brilhantes instrumentos musicais + figurinos de todas as cores e estilos + álbuns consagrados + discos de ouro e platina + prêmios e troféus + memorabilia + objetos pessoais dos mais famosos cantores e cantoras do gênero. Ao final do tour você já se tornou um fã. Entre os destaques do museu está a limousine de Elvis Presley e o carrão customizado do cantor Webb Pierce. As pessoas fazem fila para admirar os veículos.
Cheguei a Atlanta, Cidade Natal do Dr. King
Saí do Tennessee, dirigindo o Kia verde, da Hertz e ouvindo Elvis. A Trilha dos Direitos Civis me guiou diretamente a um período da história, no qual a música negra cantada pelo Rei do Rock’n Roll simbolizava a luta pela igualdade racial. Cheguei à capital do estado da Georgia, a Terra Natal do Dr. King. A Trilha dos Direitos Civis colocou, no meu caminho, Elvis Presley e Martin Luther King Jr.
Deixei o carro descansando no hotel e saí caminhando até chegar, 40 minutos depois, a um Parque Nacional inteiramente dedicado ao Dr. King. Logo na entrada do Martin Luther King Jr. National Historical Park, você verá a estátua de Mahatma Gandhi. Parece que a qualquer momento o líder e ativista indiano vai descer do pedestal e andar pelo calçamento onde estão gravados nomes e marcas de passos das mulheres e homens que, assim como Gandhi, praticaram o Satyagraha, o movimento de resistência não violento. Dentro do edifício mídias variadas = vídeos + fotos + gravações de áudio documentam discursos, passeatas e a atuação histórica de Martin Luther King Jr. Os fatos se sucedem simultaneamente nas diversas salas do complexo.

Do outro lado do quarteirão visitei a Ebenezer Baptist Church, igreja na qual Martin Luther King, ao lado do seu pai, atuava como pastor. Caminhei pelos jardins do The King Center – The Martin Luther King Jr. Center for Nonviolent Social Change – o Centro King pela Mudança Social Através da Não Violência, onde os túmulos do casal King, Martin e Coretta, flutuam sobre a água. O espelho d’água divide-se em níveis e, em cada degrau, um trecho de uma das famosas frases de Martin Luther King Jr. está impresso:
“We will not be satisfied until justice rolls down like waters and righteousness like a mighty stream.”
“Nós não estaremos satisfeitos até que a justiça jorre como água e a retidão como uma poderosa corrente (em tradução livre)”
Martin Luther King Jr.
No Alabama, na reta final da história
Fazendo um percurso épico pelas estradas da Louisiana, Mississippi, Tennessee e Georgia, entrei no Alabama em direção ao momento que definiu a luta pela igualdade racial no século 20. As histórias dramáticas registradas nesta região foram mostradas ao mundo e serviram como alavanca para mudar o status quo de um período no qual o preconceito e o desrespeito pelo ser humano chegaram a ser um padrão da sociedade.
Meu roteiro pela Civil Right Trail no Alabama começou em Anniston. Com pouco mais de 20.000 habitantes, a serenidade reinante em nada remetia aos fatos que se sucederam na década de 1960. Estava ali para conhecer a história dos Freedom Riders – os Viajantes da Liberdade. Esses homens e mulheres, de todas as raças e gêneros, tinham como estratégia embarcar nos ônibus que ligavam as cidades do Sul dos Estados Unidos para protestar contra a segregação racial a bordo. O trajeto que acabara de concluir, de Atlanta a Anniston, foi uma rota histórica para os Freedom Riders. No dia 14 de maio de 1961, ao chegar em Anniston, os Freedom Riders foram recebidos por uma multidão enfurecida que quebrou as janelas, cortou os pneus e incendiou o ônibus. Neste dia, ninguém morreu e mesmo ameaçados, os Viajantes da Liberdade não desistiram de continuar a protestar, sem violência, pelas estradas do Sul dos Estados Unidos.

Quem percorre a Civil Right Trail segue a trilha dessa história e, no coração do Alabama continuo me surpreendendo no mesmo ritmo e intensidade do começo da viagem. Nesta altura da quilometragem já posso considerar esta viagem a melhor que fiz na vida. Com uma história tão própria e, ao mesmo tempo tão universal, com tantas atrações espetaculares surgindo em paralelo, a Civil Rights Trail é uma experiência transformadora para os que nela embarcam.
Em Montgomery, encarando de frente o preconceito racial
Para você entender o que Montgomery significa para o Movimento dos Direitos Civis, é preciso situá-la historicamente. Montgomery chegou a ser a capital do comércio de escravos e celebrava a prática. Ainda hoje a cidade reflete este passado. Famílias locais enriqueceram com o comércio de seres humanos e, numa situação radicalmente oposta, famílias africanas foram separadas nos leilões de locais, quando cada parente era comprado por um diferente senhor de terra.
Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, a escravidão foi responsável por gerar riqueza e prosperidade para muitas pessoas. Aqueles que lucravam com a situação não queriam que o comércio de escravos terminasse. Toda uma retórica foi criada colocando sobre os povos africanos a pecha de “raça inferior”. Assim justificavam manter para sempre a escravidão.
Tudo isso eu aprendi ao visitar o Legacy Museum
De todos museus que visitei enquanto percorri a Trilha dos Direitos Civis, o mais impactante foi o Legacy Museum. Antes de entrar, parei diante da fachada do prédio de linhas rústicas, caiado de branco. O Museu do Legado está instalado dentro de um antigo armazém onde aconteciam os leilões de escravos em Montgomery.
Não é permitido fotografar, gravar ou filmar em seu interior, mas as mensagens e as histórias eram tão fortes que assisti aos vídeos anotando as informações mais relevantes. Também li os registros e a contabilidade dos homens mulheres e crianças ali negociados.
Interagir com as projeções, animações translúcidas de homens, mulheres e crianças, trancados no interior de celas, contando episódios de suas vidas como escravos, é como levar um soco no estômago – ou no coração – a cada informação ou história revelada.

The National Memorial for Peace and Justice é um espaço sagrado
O Memorial Nacional pela Paz e Justiça é um registro forte e perturbador. Ele é o 1º memorial dos Estados Unidos dedicado a lembrar e homenagear os negros escravizados e ainda todas as pessoas que foram mortas ou aterrorizadas em linchamentos raciais.
Me senti entrando em um espaço sagrado. Ouvindo meus passos naquele ambiente silencioso, lembrei de outros memoriais dedicados ao holocausto e genocídios. Ao entrar no pavilhão fui tomada pela força perturbadora da instalação.

À medida que você avança, vai descendo uma rampa. Temos a impressão que os blocos de ferro começam a levitar sobre nossas cabeças, numa dúbia sensação de redenção aos céus, mas também de uma aterrorizante visão de corpos pendurados. Mesmo cercada por um grande número de pessoas, o silêncio imperava. Vivíamos, juntos, um luto instantâneo e coletivo, enquanto observava lágrimas na face de alguns.
Depois de Montgomery, não havia outro caminho a seguir, senão ir até a cidade de Selma para atravessar a ponte que se tornou um símbolo de vitória na história dos Direitos Civis nos Estados Unidos.
A caminho de Selma
A estrada que liga Montgomery a Selma é hoje uma Trilha Histórica Nacional. Dirigia sem pressa, enquanto juntava as linhas do passado. Toda a história que percorrera durante minha viagem culminaria ali, com a legendária travessia da Ponte Selma. Vê-la de longe me causou arrepios. Diminuí a velocidade ao percorrê-la de carro. Das janelas do Selma Interpretive Center, observei-a novamente e me preparei para caminhar por ela. Era um dia rotineiro para os moradores, mas, para mim, era o dia em que caminharia pela legendária ponte.

Honrando a luta pelos Direitos Civis
Parei no meio da ponte e, enquanto tentava gravar na retina aquele momento, me lembrei da visita ao The King Center – The Martin Luther King Jr. Center for Nonviolent Social Change, em Atlanta. O dia estava nublado e uma fina e fria garoa marcava a chegada do outono. Sentei em um dos bancos do parque, de frente para o fogo eterno que guardava o túmulo de Coretta e Martin Luther King Jr. Li a frase inscrita no piso:
The dream lives – The legacy continues.
O sonho vive – O Legado continua.
Tudo o que acabara de ver tinha uma importância universal. A história da luta pelos Direitos Civis acontece diariamente em todas as esquinas do mundo, mas no Sul dos Estados Unidos ela é contada e mostrada com uma impressionante riqueza de detalhes. Algumas são histórias belíssimas; outras, muito cruéis, mas esta é uma história que o mundo precisa conhecer e compartilhar. Não há motivo melhor para embarcar na Civil Rights Trail