Com a luz apagada, vejo as imagens do meu dia orbitando no quarto do hotel
A Rússia está deixando minha vista cansada. Em 6 dias de viagem, as belezas encheram tanto meus olhos que agora começam agora a transbordar pelos ouvidos. E toda noite tenho experimentado um ritual extenuante. Depois de mais um dia de passeios, reviro na cama e não consigo dormir. Com a luz apagada, vejo as imagens do meu dia invadindo a órbita do meu quarto de hotel. Mesmo de olhos fechados continuo a admirá-las.
Enquanto isso, o cérebro não dá tréguas, ao corpo que pede descanso. Ele segue processando e reprocessando cada uma das atrações que vivenciei. Meu cérebro sabe que até a manhã do dia seguinte, todas deverão estar armazenadas e bem compartimentadas, porque dezenas de outras virão. Me afogando em impressões de viagem sinto a Rússia dentro de mim.
São 2h da manhã e desisti de lutar. Parei de pleitear horas de sono e decidi obedecer passivamente aos comandos cerebrais. Privei-me das cobertas quentes e levantei para buscar meu diário de viagens. O movimento passou despercebido pela madrugada glacial que, do lado de fora, espreita os viajantes.
Sinto urgência em escrever, encher as folhas com o excesso de descobertas que teima em me manter acordada. Começo registrando minha passagem por Sergiev Posad e minha entrada na catedral justamente durante a celebração do culto ortodoxo. Havia um monge e uma freira, apenas. Duas vozes enchendo de luz o templo medieval. A vontade era continuar ali o tempo necessário para aprender o cântico, majestoso em sua simplicidade. Ao meu lado, pequenas luzes e delicados reflexos tremiam sensíveis sob a fria penumbra. Iluminavam parte dos fiéis que, com os olhares fixos no altar, postavam-se em fila silenciosa, tal e qual as imagens agora dentro da minha cabeça.
Continuo seguindo o percurso do dia e concentro-me no instante em que, já na estrada, Artem, meu guia perfeito, me mostrou pescadores sobre um lago congelado. Diante da visão inédita, como não pedir para ir até lá? Deixamos o carro no acostamento, atravessamos a rodovia e passamos a andar sobre a placa de gelo quase maciço em que o lago havia se transformado. Instintivamente, pela cor, textura e transparência, podíamos perceber onde o gelo era mais ou menos fino e assim chegamos até aqueles pescadores, encapotados dos pés à cabeça.
Paro de escrever para buscar lembranças profundas, ancoradas na infância. Naquela época assistia aos desenhos animados e via pescadores como aqueles, sobre o gelo. Fascinada, pensava na distância que me separava daquela cena e como seria fantástico se um dia pudesse presenciá-la.
Passaram-se décadas até colocar meus pés sobre um rio congelado e ver, ao meu lado, aquela mesma cena que tanto me encantou quando era criança.
Tão alegre quanto na época dos desenhos animados, vi que, diferentemente das animações, para abrir um buraco no gelo não se usa serrote e sim uma furadeira Black & Decker.