Para você entender o que Montgomery significa para os Direitos Civis, é preciso situá-la historicamente
Diário de Viagem, 14 de outubro de 2018
Eu estou em Montgomery, uma cidade com pouco mais de 200.000 habitantes, capital do Estado do Alabama. Estou prestes a terminar a Trilha dos Direitos Civis no Sul dos Estados Unidos. Para você entender o que Montgomery significa para o Movimento dos Direitos Civis, é preciso situá-la historicamente
No século 17, milhões de pessoas que moravam na África foram sequestradas em seus países. Embarcadas a força em navios que cortaram o Oceano Atlântico, chegaram à América do Sul, ao Caribe e à América do Norte. Ao colocar seus pés em solo estrangeiro, essas pessoas se viram transformadas em escravos. Durante o percurso, quase 2 milhões de africanos morreram em alto mar.
Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, a escravidão foi responsável por gerar riqueza e muita prosperidade para milhões de pessoas. Como consequência, aqueles que lucravam com a situação não queriam que a prática da escravidão terminasse. Toda uma retórica foi criada colocando sobre os povos africanos a pecha de que eram um povo inferior. Assim justificavam manter para sempre a escravidão.
Montgomery no panorama do preconceito racial
Montgomery era, nesta época, a capital do comércio de escravos e celebrava a prática. Os índios da região já haviam sido mortos, suas terras tomadas e nelas os escravos plantaram o algodão. Eles também construíram estradas de ferro e, pouco a pouco a capital do Alabama foi sendo moldada pela escravatura.
Ainda hoje a cidade reflete este passado. Famílias enriqueceram absurdamente e mantiveram este status até os tempos atuais, por causa do comércio de seres humanos. Numa situação radicalmente oposta, as famílias africanas que chegavam aos Estados Unidos viram pais, mães, filhos, tios, sobrinhos e todos os parentes se separarem nos leilões de Montgomery, ao serem comprados por diferentes senhores de terra.
Tudo isso eu aprendi ao visitar o Legacy Museum
De todos os impressionantes e emocionantes museus que visitei enquanto percorri a Trilha dos Direitos Civis, o mais impactante é o Legacy Museum. Antes de entrar, parei diante da fachada do prédio de linhas rústicas, caiado de branco. O Museu do Legado está instalado dentro de um antigo armazém onde aconteciam os leilões de escravos em Montgomery.
Não é permitido fotografar, gravar ou filmar em seu interior, mas as mensagens e as histórias eram tão pungentes que assisti aos vídeos anotando as informações mais relevantes. Também li os registros, a contabilidade dos homens mulheres e crianças ali negociados.
Interagir com as projeções, animações translúcidas de homens, mulheres e crianças, trancados no interior de celas, contando episódios de suas vidas como escravos, é como levar um soco no estômago – ou no coração – a cada informação ou história revelada.
Em outra sala, ouvi os testemunhais de ex-escravos e transcrevi vários deles para o meu diário de viagem, alguns dos quais eu compartilho com você:
Como uma tropa, que seguia algemada, eu vi homens, mulheres e crianças, em fila, indo para a Virginia, para serem vendidos novamente. Eu ouvi o choro e a súplica de cada um, um som que faria qualquer alma mais caridosa cair em pratos.
Mas os corações dos seus mestres eram tão duros que eles nunca choravam. Eles só derramavam lágrimas e se lamentavam quando não conseguiam vender, pelo preço que ofereciam, esses homens, mulheres e crianças, que eles chamavam de sua propriedade.
J. Q. Adams
Quando minha mulher foi vendida, eu pedi para segurar suas mãos e me despedir dela; o homem que fazia os negócios recusou, mas disse que eu podia ficar a uma certa distância e conversar, frente a frente com ela.
Meu coração estava tão cheio, de tantas coisas, que eu só consegui falar muito, muito pouco do que sentia. Eu disse adeus a ela. Desde este dia, eu nunca mais vi ou ouvi falar dela. Eu amo minha mulher como eu amo a minha vida.
M. Grandy
Quando eu tinha 12 anos, minha família se separou depois que o meu mestre morreu. Eu era o mais velho de 3 irmãos e 2 irmãs e todos fomos vendidos separadamente. Antes a nossa mãe já havia sido vendida e nunca mais a vi.
R. Saunders
Do Legacy Museum eu segui para o The National Memorial for Peace and Justice.
The National Memorial for Peace and Justice é um registro forte e perturbador
O Memorial Nacional pela Paz e Justiça é o 1º dos Estados Unidos dedicado a lembrar + homenagear os negros escravizados + todas as pessoas que foram mortas + aterrorizadas em linchamentos raciais + humilhadas pela segregação + vítimas da violência policial.
Minha primeira impressão era a de que estava entrando em um espaço sagrado. De certa maneira, em um cemitério. A cada passo, ouvindo o meu próprio movimento naquele campo silencioso, olhando ainda de longe as centenas de blocos de ferro, amarelados e enfileirados dentro de um pavilhão, sentia que me aproximava de histórias tão terríveis quanto as do holocausto e dos genocídios. Mas foi ao entrar no pavilhão que senti a força perturbadora daquela instalação.
Cobertos de ferrugem cada bloco de ferro representava uma cidade ou região dos Estados Unidos, com maior presença do Sul do país. Abaixo da localização, havia nomes de pessoas, mulheres, homens e crianças que foram mortos por serem negros.
Em um painel, mais adiante, estavam gravados os nomes de vítimas de assassinatos e o motivo pelo qual elas foram mortas:
William Stephens e Jefferson Cole foram linchados no condado de Delta, no Texas, em 1895, após recusarem a abandonar suas terras para os brancos.
Caleb Gadly foi linchado em Bowling Green, Kentucky, em 1894 por andar logo atrás da mulher do seu empregador branco.
Sete homens negros foram linchados perto de Screamer, Alabama, em 1888, por beberem de um poço de um homem branco.
Continuei meu caminho pelo interior do Memorial quando o piso começou a inclinar e os blocos de ferro enferrujado repentinamente pareciam levitar sobre a minha cabeça, numa dúbia sensação de redenção aos céus, mas também da aterrorizante visão de corpos pendurados em forcas.
No Memorial para a Paz e a Justiça, ficamos cientes de que entre 1877 e 1950, mais de 4.400 afro americanos, mulheres, homens e crianças foram enforcados, enterrados vivos, fuzilados, afogados e espancados até a morte por grupos de homens brancos.
Ao meu lado, mesmo cercada de muitas pessoas, o silêncio ainda imperava. Vivíamos, juntos, um luto instantâneo e coletivo, enquanto observava lágrimas na face de alguns.
Depois de Montgomery, não havia outro caminho a seguir, senão ir até a cidade de Selma, para atravessar a Ponte que mudou a história dos Direitos Civis nos Estados Unidos.